Caminhões dos bombeiros em frente à boate Kiss, em Santa Maria, no dia 27 de janeiro de 2013 — Foto: Reprodução/RBS TV

Lei Kiss modernizou regras de prevenção contra incêndios no RS, mas foi flexibilizada após 10 anos

O incêndio que vitimou 242 pessoas na boate Kiss, em Santa Maria, no dia 27 de janeiro de 2013, provocou mudanças na legislação do Rio Grande do Sul. Ainda naquele ano, em dezembro, a Assembleia Legislativa aprovou a "Lei Kiss", com normas de prevenção e combate a incêndios a todos os imóveis não considerados como unifamiliares exclusivamente residenciais.

O g1 conversou com especialistas para entender como, 10 anos depois da tragédia, a legislação trata do tema no estado. O regramento foi modernizado após o incêndio, mas, desde então, vem sendo flexibilizado na avaliação de quem estuda o assunto.

"A lei [atualmente] dá a possibilidade de se correr o risco", aponta Ângela Graeff, coordenadora do Curso de Especialização em Engenharia de Segurança contra Incêndio da UFRGS.
"É o fim da Lei Kiss? A gente pode ter um grande incêndio e ter que fazer uma nova lei porque a atual já não cobre mais", diz o diretor do Sindicato dos Engenheiros (Senge), João Leal Vivian.

O g1 também procurou o governo do estado, por meio da Casa Civil, para comentar as mudanças na lei. A pasta encaminhou as demandas à Secretaria da Segurança Pública, que respondeu aos questionamentos através do Corpo de Bombeiros Militar (CBM).

Comandante-geral da corporação até esta quarta-feira (25), quando foi anunciada a troca da chefia dos Bombeiros pelo governo do RS, o coronel Luiz Carlos Neves Soares Júnior, afirma que as medidas de prevenção seguem sendo cobradas e que proprietários, responsáveis técnicos e bombeiros atuam pela efetiva segurança de uma edificação.

"As alterações ocorridas na lei foram a nível processual (encaminhamento do plano), sendo mantidas inalteradas as exigências das medidas de segurança contra incêndio, que são efetivamente responsáveis por mitigar os riscos e as consequências do incêndio", afirma.

O que é exigido atualmente:
- Residência unifamiliar: isenta de licenciamento
- Propriedade agrosilviopastoril: isenta de licenciamento
- Atividade sem atendimento ao público ou estoque de materiais: isenta de licenciamento
- Área de até 200 m² e até dois pavimentos (baixo risco): isenta de licenciamento, mas precisa dispor de extintores, sinalização e saídas de emergência, pessoa treinada para operar extintores e orientar retirada do prédio e é sujeita a vistorias extraordinárias
- Área de até 750 m² e até três pavimentos (baixo ou médio risco): necessário apresentar Plano Simplificado de Prevenção e Proteção Contra Incêndio (PSPCI) com vistoria dispensada para emissão do alvará
- Área superior a 750 m² e outros requisitos (alto risco): necessário apresentar Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio (PPCI) com vistoria dos bombeiros antes da emissão do alvará

Antes
Antes da ocorrência em Santa Maria, a legislação vigente sobre incêndios no estado datava do final dos anos 1990. Um decreto de 1997, assinado pelo então governador Antônio Britto (MDB), determinava que os bombeiros realizassem a vistoria de um imóvel, para a classificação da edificação feita pelo Instituto de Resseguros do Brasil.

Na avaliação da professora Ângela Graeff, o foco do regramento era a proteção do patrimônio.

"Ela determinava que as edificações precisavam ter projetos se segurança contra incêndio, mas era uma legislação bastante defasada", explica a professora de engenharia civil.

A especialista considera que a antiga norma não detalhava questões como compartimentação vertical e horizontal (técnica para evitar que o fogo se espalhe pelos níveis de um imóvel), controle de materiais de acabamento e revestimento, controle de fumaça, entre outros.
Na época
Com a Lei Kiss, edifícios passaram a ser classificados como de baixo, médio ou alto risco de chamas. A partir disso, as exigências eram estabelecidas. A norma passou a considerar área e altura, como era antes, mas também ocupação, lotação máxima, capacidade de controle de fumaça, entre outros itens. Após cumprir as exigências, os imóveis recebiam um alvará dos bombeiros.

"A nova lei tinha novos objetivos: de preservar a vida, de garantir o funcionamento das edificações e de proteger patrimônios", lembra o ex-deputado estadual Adão Villaverde (PT), que presidiu a comissão que alterou a legislação.

O autor do projeto, engenheiro e professor de gestão do conhecimento e da inovação, lembra que a lei virou referência internacional por ser "criteriosa, rigorosa, justa e exequível". O texto foi aprovado por unanimidade na Assembleia.

"Tinha um rigor porque ela buscava definir claramente a questão das inspeções, dos licenciamentos, das fiscalizações e de eventuais sanções quando da não aplicação ou da má aplicação da legislação. Justa porque ela exigia da edificação o que realmente ela necessitava. Exemplo, se você tem uma fábrica de gelo e uma fábrica de fogos de artifício com a mesma área e com a mesma altura, o plano de prevenção contra incêndios da legislação anterior era o mesmo", comenta Villaverde.

O diretor Senge João Leal Vivian comenta que a nova legislação "trazia muito a questão da engenharia e da arquitetura, com a responsabilidade técnica". No entanto, ele pondera que "o grande erro" foi o fato da lei ter entrado em vigor imediatamente, sem tempo de adaptação.

Para Ângela Graeff, a nova lei provocou uma "mudança de paradigma" no estado, se classificando outros itens além de altura, área e ocupação de edificações.

"Se incorpora também aqui a questão da carga de incêndio, que vai levar a questão do risco – alto, médio, baixo. Fora outras questões legais, de penalidade, que na lei anterior não se falava tanto", fala.

Primeiras flexibilizações
Em 2016, a Lei Kiss sofreu uma série de alterações. O prazo de validade do Alvará de Prevenção e Proteção Contra Incêndio (APPCI), antes de um a três anos, foi ampliado para valer de cinco a dois anos. Inspeções para locais de reuniões de público deixaram de ser anuais e passaram a ser feitas a cada dois anos. Já nos demais locais, a cada cinco anos.

"Foi a grande precarização da Lei Kiss", diz o diretor do Senge.
Segundo a Assembleia Legislativa, não houve alterações em edificações com risco alto. Mas, na época, houve flexibilizações para imóveis como templos religiosos e centros de tradições gaúchas (CTGs).

"Muitas vezes, não apareciam nem eram transparentes as pressões de setores que propunham essas excepcionalidades e que levavam a aquilo que eu sempre chamei de um 'jentinho' de arrumar brechas na legislação", comenta Adão Villaverde.

Na época, foi instituído o Certificado de Licenciamento do Corpo de Bombeiros (CLCB). O documento dispensava de alvará edificações com área total de até 200 m² e até dois pavimentos. Hoje, esse tipo de imóvel precisa contar com alguns itens de segurança, sem necessidade de apresentar documentação.

"Em 2016, a gente vê uma defesa da implantação do CLCB para agilizar a emissão dos alvarás. E agora é extinto o CLCB, e essas edificações ficam isentas de alvará. Foi a simplificação da simplificação", afirma João Leal Vivian.

Novas mudanças
Em 2019, o governador Eduardo Leite (PSDB) assinou um decreto adiando para 27 de dezembro de 2023 o prazo para adequação de edificações públicas ou privadas à Lei Kiss. O Corpo de Bombeiros diz que desconhece até o momento qualquer estudo ou proposta para a alteração do prazo de adequação à lei.

O engenheiro João Leal Vivian questiona a ampliação dos prazos, principalmente regidos por decretos do Executivo.

"A gente vai para 10 anos da boate Kiss e ainda não venceu esse prazo", diz.

Outra mudança significativa ocorreu em 2022, quando foram derrubadas as exigências de alvarás para 732 tipos de imóveis. O coronel Luiz Carlos Neves Soares Júnior sustenta que as mudanças trataram apenas de questões administrativas, envolvendo a documentação exigida.

"Não se relacionando com os equipamentos e sistemas de proteção contra incêndio, cujas exigências estão mais rigorosas após 2013, em comparação com a legislação anterior", afirma.

A professora Ângela Graeff dá o exemplo de um pêndulo para retratar as mudanças na Lei Kiss ao longo dos anos.

"Quando acontece uma tragédia, o pêndulo se mexe bastante, gera comoção, as pessoas começam a falar sobre aquilo. Começa a passar os dias, os meses, os anos, e a gente começa a sentir que o pêndulo passa a diminuir [o ritmo]", diz.

O autor do projeto da Lei Kiss acredita que a norma, como está na atualidade, é frágil para fazer a prevenção na dimensão e no alcance necessários no estado.

"As sucessivas flexibilizações mutilaram completamente a legislação e ela hoje está a uma distância, infelizmente, enorme daquela que nós produzimos inicialmente", analisa o ex-deputado Villaverde.

Futuro
João Leal Vivian, do Senge, afirma que a Lei Kiss provocou avanços, principalmente na prevenção de incêndios em edificações de alto risco, como boates e casas noturnas. O especialista critica, contudo, a série de imóveis que tiveram as normas flexibilizadas.

O comandante dos Bombeiros afirma que, atualmente, a fiscalização dos estabelecimentos ocorre em operações planejadas conforme um calendário anual de vistorias extraordinárias. Essas operações contam com o apoio de prefeituras e demais órgãos de segurança, seja por denúncias ou por demandas judiciais.

"Nessas inspeções são verificados todos os sistemas e equipamentos de segurança contra incêndio, o treinamento exigido e se a utilização do local corresponde ao fim para o que foi licenciado, entre outros requisitos de segurança", explica o coronel Luiz Carlos Neves Soares Júnior.

Para o engenheiro João Leal Vivian, a adoção de normas prescritivas, quando a lei estabelece quais são as exigências para cada categoria de imóvel, deveria ser substituída por um regramento de desempenho. Nesse caso, técnicos calculariam, com o auxílio de ferramentas digitais, simulações para cada tipo de prédio, tempo de evacuação e extração de fumaça, entre outras questões.

A coordenadora do Curso de Especialização em Engenharia de Segurança contra Incêndio da UFRGS considera que, com as flexibilizações, a responsabilização por eventuais problemas fica prejudicada.

"Embora haja a responsabilidade dele [um proprietário de edificação] não ter as medidas, só vai ter a responsabilização de acontecer alguma coisa", afirma ângela Graeff.

Fonte: G1

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